Texto do Rodrigo Perez
Oliveira. Historiador e Professor da UFBA:
"Que Lula há muito
tempo deixou de ser homem e se tornou uma instituição é consenso à direita e à
esquerda. O que está em jogo, em disputa, é o significado da instituição, o que
ela representa.
Lula é o maior corrupto da
história do Brasil ou a principal liderança popular que esse país já teve?
A disputa está ai. No atual
estado da situação não sobrou muito espaço para meio termo. Ou é uma coisa ou é
a outra. Cada um que escolha seu lado.
Na condição de instituição,
todo gesto de Lula tem dimensão simbólica, é lido e interpretado por todos, por
detratores e admiradores. Lula pega o microfone e o país paralisa em frente à
TV. Os admiradores choram. Os jornalistas a serviço da mídia hegemônica silenciam.
Ninguém fica indiferente a uma instituição desse tamanho.
Lula sabe perfeitamente que
está sendo observado, conhece muito bem o tamanho que tem e explora com extrema
habilidade sua capacidade de fabricar símbolos.
Aqui neste ensaio, trato de
uma parte muito pequena da biografia de Lula, mas que talvez seja, na
perspectiva simbólica, a mais importante. Talvez seja até mais importante [que]
os oito anos de seu governo.
Falo das 34 horas em que
Lula esteve no sindicato dos metalúrgicos, sob os olhares do mundo, construindo
a narrativa de seu próprio martírio.
Não falo em “resistência”,
pois desde a condenação no Tribunal da Quarta Região, em 24 de janeiro, que o
destino de Lula já estava selado. Os advogados cumpriram sua função, recorrendo
a todos as instâncias e tentando um habeas corpus, mas todos já sabiam que Lula
seria preso.
Por isso, seria ingênuo
dizer que o que aconteceu em São Bernardo do Campo foi um ato de resistência.
Lula é um político experiente demais para resistir em causa perdida.
Alguns companheiros e
companheiras, no auge da emoção, tentaram usar a força. Lula fugiu da custódia
dos trabalhadores e se entregou à Polícia Federal, pois sabe que contra o braço
armado do Estado ninguém pode. Lula sabe que aqueles que ali estavam eram trabalhadores
e trabalhadoras, pais e mães de família. Não eram soldados. Não eram
guerrilheiros. A resistência não era possível.
Lula sabe que seria
impossível sustentar aquela mobilização durante muito tempo e por isso não
resistiu. Mas daí a se entregar resignado como boi manso para o abate a
distância é grande, muito grande.
Penso mesmo que Lula fez
mais que resistir, já que a resistência seria quixotesca, irresponsável. Lula
pautou a própria prisão, saiu da posição de simples condenado pela justiça para
se tornar o dono da narrativa. Lula foi sujeito do próprio encarceramento, deu
um nó nas forças do golpe neoliberal.
Muitos achavam que Lula
deveria ter fugido para uma embaixada amiga e de lá partido para o exílio no
exterior. Confesso que também pensei assim. Mas Lula é muito mais inteligente
que todos nós juntos.
Lula sabe que já viveu
muito, sabe que não lhe sobra muito tempo de vida. O que resta agora é a
consolidação da biografia, o retorno às origens, seu renascimento como ícone da
esquerda brasileira, imagem que ficou um tanto maculada pelos oito anos em que
governou o Brasil.
É que no capitalismo não
existem governos de esquerda. Governo de esquerda só com revolução e Lula nunca
foi revolucionário, nunca prometeu uma revolução.
Todo governo legitimado
pelas instituições burguesas será sempre burguês. No máximo, no melhor dos
cenários, será um governo de centro sensível às demandas populares. O lulismo
foi exatamente isso: uma prática de governo de centro sensível às necessidades
dos mais pobres. O lulismo transformou o Brasil pra melhor, com todos os seus
limites, com todas as suas contradições.
Mas para encerrar a vida em
grande estilo carece de algo mais. Era necessária a canonização política. E só
a esquerda canoniza líderes políticos. A direita é dura, cinza, sem poesia.
O golpe neoliberal conseguiu
reconciliar Lula com as esquerdas, o que há poucos anos parecia algo impossível
de acontecer.
É que pra ser canonizado
pelas esquerdas nada melhor que ser perseguido pelo poder judiciário, habitat
histórico das elites da terra. Basta lançar no google os sobrenomes da maioria
dos nossos juízes, procuradores e desembargadores e veremos os berços de
jacarandá que embalaram os primeiros sonhos dos nossos magistrados.
É claro que Lula não
planejou a perseguição. É óbvio que ele não queria ser perseguido. Se pudesse
escolher, estaria tendo um final de vida mais tranquilo, talvez afastado da
política doméstica e atuando nas Nações Unidas. Mas já que a vida deu o limão,
por que não espremer, misturar com açúcar, cachaça, mexer bem e mandar pra
dentro?
Lula fez exatamente isso:
uma caipirinha com os limões azedos que seus adversários togados lhe deram.
Primeiro, ele fez questão de
esgotar todos os mecanismos legais. A sentença de Moro, os votos dos
desembargadores, os votos dos Ministros da Suprema Corte não são palavras ao
vento. São “peças”, para falar em bom juridiquês, que ficarão arquivadas e
disponíveis para a consulta, para análise.
Imaginem só, leitor e
leitora, os historiadores que no futuro,
afastados da histeria e das disputas que hoje turvam nossos sentidos,
examinarão a sentença de Sérgio Moro,
verão que o juiz não foi capaz de determinar em quais “atos de ofício”
Lula teria beneficiado a OS para fazer por merecer o tal Triplex do Guarujá.
É como se Moro estivesse
falando: "não sei como fez, mas que fez, ah fez".
E o voto dos desembargadores
do TRF 4, atravessados de juízos de valor, quase sem relar no mérito da
sentença?
E o voto de Rosa Weber? Por
Deus, o que foi aquele voto de Rosa Weber?
“Sei que estou votando
errado, mas vou continuar votando errado só porque a maioria votou errado. Uma
maioria que só vai votar porque eu vou votar errado também.”
Lula, ao se negar a fugir,
obrigou cada um desses togados a deixar impressos na história os rastros da
própria infâmia.
Uma vez decretada a prisão,
o que fez Lula?
Deu um tiro no peito? Se
entregou em São Paulo? Foi pra Curitiba? Fugiu?
Não!
Lula se aquartelou no
sindicado mais simbólico da redemocratização brasileira, o sindicado que
representa as expectativas que nos 1980 apontavam para um Brasil mais justo,
mais solidário.
No apogeu da crise que
significa o colapso do regime político fundado na redemocratização, Lula
decidiu encenar o seu martírio onde tudo começou.
Naquele que talvez seja o
último grande ato de sua vida pública, Lula voltou às origens.
Protegido pela massa de
trabalhadores, Lula não cumpriu o cronograma estipulado por Sérgio Moro.
Cercado por uma multidão, o Presidente operário transformou o sindicato dos
metalúrgicos numa embaixada trabalhista.
A Polícia Federal, o braço
armado do governo golpista, disse que não usaria a força. A Polícia Federal
sabia que o povo resistiria, que sem negociação não tiraria Lula do sindicado
sem deixar uma trilha de sangue.
Lula negociou e, nos limites
dados por sua posição de condenado pela justiça, venceu e humilhou a instituições
ocupadas pelo golpe neoliberal.
Lula não estava foragido. O
mundo inteiro sabia onde ele estava e mesmo assim o Estado brasileiro não foi
capaz de prendê-lo no prazo determinado pela justiça golpista. Durante um pouco
mais de 30 horas, Lula foi um exilado dentro do Brasil, como se São Bernardo do
Campo fosse um República independente, uma república governada pelos
trabalhadores.
Lula fez de uma missa em
homenagem a Dona Marisa Letícia um ato político e aqui temos mais um lance
simbólico do Presidente operário: restabeleceu as pontes entre a esquerda
brasileira e a Igreja Católica, aliança que tão importante nos anos 1970,
quando sob as bênçãos da Teologia da Libertação foi fundado o Partido dos
Trabalhadores.
No palanque, junto com o
Padre, estavam Lula e as futuras lideranças da esquerda brasileira. Lula
dividiu seu butim em vida, tomou pra si esse ato mórbido, ao abençoar Boulos,
Manuela e Fernando Haddad.
Lula unificou em vida a
esquerda brasileira. Não só unificou, mas pautou, apresentou o programa, cantou
o caminho das pedras.
Lula deixou claro que o povo
mais pobre precisa comer melhor, precisa consumir, viajar de avião, estudar na
universidade. Lula, o operário que durante a vida inteira foi humilhado por não
ter diploma de ensino superior, foi o professor de milhões de brasileiros que
sonham com um país melhor.
É como se Lula estivesse
dizendo: “num país como o Brasil, a obrigação mais urgente da esquerda é
transformar o Estado burguês em agente provedor de direitos sociais”.
Lula discursou durante uma
hora em rede nacional, se defendeu das acusações. Não foi uma defesa para a
justiça, mas sim para o tribunal moral da nação. Não foi um discurso para o
presente. Foi um discurso para a história.
Não, meus amigos, acuado
pelas forças do atraso, Lula não deu um tiro no próprio peito.
Lula mandou trazer cerveja e
carne e fez um churrasco com seus companheiros e companheiras. Foi carregado
pelos seus iguais, foi tocado, beijado. Saliva, suor, pele.
Lula não deu um tiro no
próprio peito.
Getúlio é gigante, sem
dúvida, mas também era herdeiro das oligarquias. Lula é o único trabalhador
que, vindo da base da sociedade, conseguiu governar e transformar o Brasil.
Lula já é maior que Getúlio.
Diferente de Getúlio, Lula
entrou pra história sem precisar sair da vida."
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