Por Bruno Galindo
Já há inúmeros juristas e pessoas do mundo político
e midiático aventando a possibilidade de mais um impedimento presidencial. “Eu
vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades”
já dizia Cazuza.
Lamentavelmente, o impeachment parece voltar
à pauta no Brasil em razão de nossa endêmica instabilidade política e
institucional, agravada por frequentes atitudes e pronunciamentos bastante
controversos por parte do Presidente Jair Bolsonaro, que mal completou 7 meses
de exercício de um mandato de 4 anos. Já há inúmeros juristas e pessoas do
mundo político e midiático aventando a possibilidade de mais um impedimento
presidencial, com destaque para Miguel Reale Jr., Professor Titular da
Universidade de São Paulo, ex-Ministro da Justiça e um dos autores da petição
inicial que resultou no impedimento da ex-Presidente Dilma Roussef, que o caso
do atual Presidente da República seria grave a ponto de gerar sua interdição
além do próprio impedimento.[1]
Em 2016, pouco antes da autorização fornecida pela
Câmara dos Deputados para a deflagração do processo em relação a ex-Presidente
Dilma Roussef por crimes de responsabilidade, publiquei através da Editora
Juruá um singelo estudo intitulado “Impeachment à Luz do
Constitucionalismo Contemporâneo”[2], no qual tive a preocupação de tentar sair
um pouco do debate político apaixonado de então e analisar os aspectos
estritamente jurídicos do referido processo. Posteriormente, tive oportunidade
de divulgar vários outros pequenos ensaios sobre aspectos específicos da
questão, sendo o mais abrangente deles uma espécie de posfácio ou complemento
do livro com a análise dos desdobramentos do processo da ex-Presidente, que
publiquei em espanhol a pedido de colegas professores e estudantes de países
falantes deste idioma, ansiosos por conhecerem melhor o que estava ocorrendo no
Brasil. Este foi intitulado “Impeachment en Brasil Pos-Dilma: ¿Ulises
Desatado por Hermes? El “Canto de las Sirenas” Hermenéutico-Constitucional”[3]
e publicado pela Revista Videre no ano passado.
Nas duas ocasiões, mantive a pretensão de adentrar
os aspectos jurídicos e constitucionais sem adentrar em análises da conjuntura
política geral. Como jurista profissional que sou, minha opção pelos aspectos
técnicos foi uma tentativa de dar uma contribuição que entendo realmente
relevante ao tema, não obstante ser impossível uma neutralidade absoluta ante
acontecimentos que estamos vivenciando no momento em que escrevemos. Apesar de
não ser algo simples de se fazer, o jurista que quer continuar jurista e não se
transformar em um mero “torcedor político” precisa ao menos tentar analisar as
questões de modo desapaixonado e sóbrio. É o que mais uma vez tentarei fazer e
o leitor que conseguir ler essas linhas até o fim dirá se o consegui ao menos
em parte.
Leia também:
Vamos então adentrar a questão, independentemente
de nossas simpatias e antipatias político-ideológicas, e verificar se há
fundamentos jurídicos para a deflagração de um eventual processo de impeachment
do Presidente Jair Bolsonaro.
O Impeachment e suas características
Retomando brevemente algumas das linhas
que expus nos estudos citados, o impeachment é um mecanismo de
destituição de governantes e agentes políticos que nasceu na Inglaterra
medieval e foi incorporado ao desenvolvimento do parlamentarismo naquele país,
muito embora não seja utilizado por lá há mais de dois séculos face a criação
do “voto de desconfiança” (motion of no confidence), instrumento bem
mais simples de destituição desses agentes que se tornou típico no sistema
parlamentarista mundo afora.
Foi incorporado ao presidencialismo,
inicialmente nos EUA e depois nas constituições presidencialistas em geral,
latino-americanas e brasileiras em particular. Sua configuração constitucional
aponta para um processo de natureza político-criminal, não obstante os recentes
casos do ex-Presidente paraguaio Fernando Lugo e da ex-Presidente brasileira
Dilma Roussef talvez reforcem o aspecto mais estritamente político do processo,
deixando em segundo plano os seus reais fundamentos jurídicos.
Apesar disso, a experiência histórica
comparada parece mostrar o impeachment como de natureza
político-criminal e é apropriado que assim seja. Como afirmei em meu livro, o impeachment
deve ser pensado como um instrumento excepcional, somente utilizável em
situações de grave crise institucional e política aliado ao cometimento de um
ou mais crimes por parte do chefe do poder executivo nacional. Não deve ser
banalizado nem utilizado a qualquer momento, menos ainda pode servir à retirada
de um Presidente apenas por este estar, por exemplo, governando mal e sendo
impopular. Como destacou William Rehnquist, célebre juiz presidente da Suprema
Corte dos EUA, em relação às suas políticas públicas, o presidente da República
somente pode ser responsável perante todo o país nas eleições periódicas
quadrienais para a Presidência e não perante o Congresso através do processo de
impeachment.[4]
Concordo com Rehnquist. Governo ruim no
presidencialismo se retira nas eleições seguintes ou com algum mecanismo de
destituição popular como o recall ou o referendo revogatório de mandato,
presente em algumas constituições como a da Colômbia e a da Bolívia, mas
inexistentes na atual Constituição brasileira. O impeachment não é
instrumento de abreviação de mandato por mau governo. Não obstante, se o Presidente
comete crimes (aqui no Brasil bifurcados em dois tipos, comuns e de
responsabilidade) durante o exercício do mandato, é possível que ante esses
fatos delituosos e tendo um razoável consenso político nas Casas do Congresso
favorável a um processo dessa natureza, o impeachment possa ser
utilizado. Daí vem minha posição de que o impeachment possui uma
natureza político-criminal em seus requisitos: 1) criminal: fundamento jurídico
sólido e consistente consubstanciado no cometimento de um ou mais crimes
(comuns e/ou de responsabilidade), sendo atos de natureza dolosa que violem ao
mesmo tempo a Constituição e a Lei 1079/1950; 2) política: necessidade de
razoável consenso político no âmbito das Casas parlamentares nacionais da
imprescindibilidade de que tal processo ocorra. Ausente um ou outro desses
requisitos, o impeachment não estaria constitucionalmente autorizado.
Deixo por ora de lado a análise da
conjuntura política, se e quando haveria esse razoável consenso político. Nesse
momento, como jurista, me interessa apenas o primeiro requisito e é nele que
está inserida a pergunta do título deste ensaio: há fundamentos jurídicos que
possam justificar um eventual impeachment do Presidente Bolsonaro?
Embora uma resposta definitiva a isso
dependa obviamente de um processo regular com a observância de todas as
garantias constitucionais pertinentes (devido processo legal, ampla defesa,
presunção de não culpabilidade, in dubio pro reo), entendo que alguns
dos atos do atual Presidente da República deste início de mandato podem
configurar, em tese, crimes comuns e/ou de responsabilidade. Em meu
entendimento, são os seguintes:
“Paraíbas” – discriminação em razão da origem
“Daqueles governadores de “paraíba”, o
pior é do Maranhão. Não tem que ter nada com esse cara”.[5]
A afirmação acima foi feita pelo
Presidente da República em recente evento envolvendo jornalistas, tendo sido
captada por microfones da TV Brasil. Denota um tratamento pejorativo e
inferiorizador dos nordestinos, comum dentre os cariocas que nutrem preconceito
contra estes.[6] O Presidente é do Rio de Janeiro e na sua fala, evidentemente
não se refere ao Estado da Paraíba, mas aos nordestinos em geral (governadores
de “paraíba”). Praticar discriminação ou preconceito em razão da procedência,
em tese, é ato que pode ser tipificado como o crime do art. 20 da Lei
7716/1989, assim redigido:
“Art. 20. Praticar, induzir ou incitar
a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência
nacional.
Trata-se de crime comum por esta Lei,
sendo o caso de ajuizamento de ação penal por parte do Procurador Geral da
República a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal, após autorizada a
instauração do processo por 2/3 dos membros da Câmara dos Deputados.
Também se afigura possível classificar
o ato como crime de responsabilidade no art. 9º, 7, como crime contra a
probidade na administração, no caso, “proceder de modo incompatível com a
dignidade, a honra e o decoro do cargo”, não obstante a subjetividade que
comporta a análise de um ato presidencial como indigno e desonroso ao cargo.
Neste caso, como em todos os de crimes de responsabilidade, o julgamento é
realizado pelo Senado Federal, cuja condenação só pode ocorrer se anuírem a ela
2/3 dos senadores. Assim como no caso dos crimes comuns, o processo só pode ser
instaurado após a autorização pela Câmara dos Deputados pelo mesmo quórum.
Leia também:
Interferência na potencial deposição de governo de outro país
A simpatia ideológica com os EUA, e
notadamente com o atual Presidente daquele país, Donald Trump, por parte do
Presidente Bolsonaro são notórias. Para além, entretanto, dessa aproximação,
sob Bolsonaro, o Brasil alinha-se quase irrestritamente à visão do
norte-americano sobre a questão da Venezuela, tendo o Presidente falado
abertamente em apoio à deposição do atual Presidente deste último país, Nicolás
Maduro, ainda no primeiro mês de seu mandato. Posteriormente, discutiu isso de
modo aberto com o Presidente Trump em sua primeira visita aos EUA na condição
de Chefe de Estado brasileiro, tendo chegado mesmo a fazer uma inusual visita à
Central de Inteligência Americana (CIA), fora da agenda oficial. Em junho,
prossegue discutindo com Trump formas de asfixiar economicamente o governo
venezuelano com vistas à sua queda.[7]
Por pior que seja um governo de um país
estrangeiro, não parece que esteja entre as atribuições constitucionais do
chefe do poder executivo brasileiro participar de conspirações para a derrubada
destes. Dentre os princípios que regem as relações exteriores do Estado
brasileiro estão a não intervenção e a autodeterminação dos povos (CF, art. 4º,
III e IV), de observância obrigatória pelo Presidente da República na condução
de sua política externa.
Além de descumprir esses princípios
constitucionais, o Presidente pode em tese ter incorrido no crime de
responsabilidade previsto no art. 5º, 3, da Lei 1079/1950 (“Art. 5º São
crimes de responsabilidade contra a existência política da União: (…) 3)
cometer ato de hostilidade contra nação estrangeira, expondo a República ao
perigo da guerra, ou comprometendo-lhe a neutralidade;”), bem como é possível
investigar o conteúdo de sua visita à Agência de Inteligência dos EUA ou das
próprias tratativas junto ao Presidente norte-americano para esclarecer se não
teriam ocorrido os delitos previstos na mesma Lei 1079/1950, art. 5º, 4 (“Art.
5º São crimes de responsabilidade contra a existência política da União:
(…) 4) revelar negócios políticos ou militares, que devam ser mantidos secretos
a bem da defesa da segurança externa ou dos interesses da Nação;”)
concomitantemente aos do art. 13 da Lei 7170/1983 (“art. 13 – Comunicar,
entregar ou permitir a comunicação ou a entrega, a governo ou grupo
estrangeiro, ou a organização ou grupo de existência ilegal, de dados,
documentos ou cópias de documentos, planos, códigos, cifras ou assuntos que, no
interesse do Estado brasileiro, são classificados como sigilosos. Pena:
reclusão, de 3 a 15 anos.”).
Seriam aqui crimes de responsabilidade,
respondendo o Presidente em processo correspondente nos moldes expostos acima.
Ordem para celebração de golpe de Estado contra a ordem democrática
A Constituição da República possui
compromisso estreito com a democracia e o Estado de direito. São fundamentos
constitucionais do Estado brasileiro. Sua relevância é tamanha que a Lei Maior
nacional possui mandamento de criminalização de conduta que vise à sua
derrubada, considerando isso de tal gravidade que o crime, nesse caso, é
inafiançável e imprescritível (CF, art. 5º, XLIV – constitui crime inafiançável
e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem
constitucional e o Estado Democrático”).
Sem adentrar no mérito de que o
movimento político das Forças Armadas em 1964 possa ter sido feito para impedir
golpes de Estado do espectro ideológico oposto ao dos militares que o
perpetraram, é fato amplamente aceito na teoria política de que se tratou de um
efetivo golpe de Estado. Ainda que se queira intitular de “Revolução”, é fora
de qualquer dúvida que tivemos uma ruptura institucional e constitucional com a
ordem democrática então vigente.
Determinar a comemoração de uma ruptura
com a ordem democrática e o Estado de direito, como fez o Presidente Bolsonaro
este ano[8], é conduta presidencial passível de tipificação pela Lei 1079/1950,
art. 8º, 4, combinada com a Lei 7170/1983, art. 22, I, como se pode ver de seus
textos:
Lei 1079/1950 – “Art. 8º São crimes contra a
segurança interna do país:
(…)
4 – praticar ou concorrer para que se perpetre
qualquer dos crimes contra a segurança interna, definidos na legislação penal;”
Lei 7170/1983
“Art. 22 – Fazer, em público, propaganda:
I – de processos violentos ou ilegais para
alteração da ordem política ou social;
(…)
IV – de qualquer dos crimes previstos nesta Lei.
Pena: detenção, de 1 a 4 anos.”
Nesse caso, é possível cogitar
juridicamente tanto o crime comum, como o de responsabilidade, seguindo o
processo descrito anteriormente para cada um dos casos.
Livre exercício de poder constitucional de um Estado da Federação
“Daqueles governadores de “paraíba”, o
pior é do Maranhão. Não tem que ter nada com esse cara”.[9]
Ao contrário do que pode parecer, não
estou replicando o parágrafo já escrito, mas é que nessa frase há
potencialmente o cometimento de outro crime de responsabilidade. Não se sabe o
que exatamente quer dizer a segunda parte da frase (“Não tem que ter nada com
esse cara”), mas é legal e constitucionalmente vedado ao Presidente da
República deliberadamente praticar discriminação entre os Estados da Federação
com base na ideologia política dos governantes destes ou pelo fato deles lhe
fazerem oposição ou serem aliados. Se o praticar, incorre em crime contra o
livre exercício de poder constitucional, tipificado como crime de
responsabilidade no art. 6º, 2 e 7, da Lei 1079/1950:
“Art. 6º São crimes de responsabilidade contra o
livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes
constitucionais dos Estados:
(…)
2 – usar de violência ou ameaça contra algum
representante da Nação para afastá-lo da Câmara a que pertença ou para coagí-lo
no modo de exercer o seu mandato bem como conseguir ou tentar conseguir o mesmo
objetivo mediante suborno ou outras formas de corrupção;
(…)
7 – praticar contra os poderes estaduais ou
municipais ato definido como crime neste artigo;”
Tratar-se-ia, pois, da discriminação de uma unidade
da Federação e uma violação ao princípio federativo, fundamento e cláusula
pétrea da Constituição da República (CF, arts. 1º e 60, § 4º, I).
Ameaça à liberdade de manifestação de pensamento e de imprensa
“Até porque ele é
casado com outro homem e tem meninos adotados no Brasil. Malandro para evitar
um problema desse, casa com outro malandro ou adota criança no Brasil. O Glenn
não vai embora, pode ficar tranquilo. Talvez pegue uma cana aqui no Brasil, não
vai pegar lá fora não.”[10]
A frase acima dita em cerimônia pública
recente faz referência ao jornalista Glenn Greenwald, do The Intercept,
responsável pelo que ficou conhecido como “Vaza Jato”, vazamento de supostas
conversas de bastidores atribuídas aos membros da denominada “Operação Lava
Jato”, com destaque para seu Coordenador, Procurador da República Deltan
Dallagnol, e o Ministro da Justiça do Governo Bolsonaro, o ex-Juiz Federal
Sérgio Moro. Em função da gravidade das revelações, parece haver por parte do
Presidente uma postura intimidatória e ameaçadora em relação ao referido
jornalista, tendo declarado que ele cometeu crime e pode vir a ser preso.
Evidentemente, determinar a prisão de
quem quer que seja não é atribuição constitucional do Presidente da República,
sendo competência exclusiva do poder judiciário, no que somente usurpando suas
funções pode o chefe do executivo nacional direta ou indiretamente agir nesse
sentido.
Neste caso, a conduta pode configurar
crime contra o exercício de direito individual, tipificado na Lei 1079/1950,
art. 7º, 5 e 9:
“Art. 7º São crimes de responsabilidade contra o
livre exercício dos direitos políticos, individuais e sociais:
(…)
5 – servir-se das autoridades sob sua subordinação
imediata para praticar abuso do poder, ou tolerar que essas autoridades o
pratiquem sem repressão sua;
(…)
9 – violar patentemente qualquer direito ou
garantia individual constante do art.
141 e bem assim os direitos sociais assegurados no artigo
157 da Constituição;”[11]
Leia também:
Demissão de servidor por razões pessoais
Em 2012, quando ainda era deputado
federal, o Presidente Bolsonaro foi multado em R$ 10 mil por pesca ilegal em
ação de fiscalização realizada sob a chefia de José Olímpio Augusto Morelli,
analista ambiental do IBAMA. Em 27 de março de 2019, já sob o Governo atual,
portanto, este órgão exonerou o servidor em questão do cargo de Chefe do Centro
de Operações Aéreas da Diretoria de Proteção Ambiental. Tudo isso foi precedido
por discursos de campanha do Presidente bastante agressivos contra o trabalho
dos órgãos ambientais, tendo dito, inclusive, que a “festa” de multas
ambientais iria acabar em seu governo. O referido fiscal, por sua vez, declarou
em entrevista não ter dúvidas de que “Bolsonaro incorporou discurso
antiambiente a fim de levar a cabo uma vingança pessoal, que se consumou agora
com meu afastamento”.[12]
Sabe-se que cargos em comissão e
funções de confiança são de livre nomeação e exoneração pelo poder executivo,
mas apesar da discricionariedade, o interesse público é a motivação
determinante desses atos de poder. Não se pode nomear ou exonerar com base em
razões estritamente pessoais e não republicanas, confundindo discricionariedade
com arbitrariedade. A se comprovar que a motivação da exoneração foi de fato
dissociada de qualquer critério técnico ou interesse público, o Presidente da
República pode ter incorrido nos crimes previstos no art. 9º, 4, 5 e 7:
“Art. 9º São crimes de responsabilidade
contra a probidade na administração:
(…)
4 – expedir ordens ou fazer requisição
de forma contrária às disposições expressas da Constituição;
5 – infringir no provimento dos cargos
públicos, as normas legais;
(…)
7 – proceder de modo incompatível com a
dignidade, a honra e o decôro do cargo.”
Indicação de pessoa a cargo público em razão de parentesco pessoal
O Presidente Bolsonaro indicou seu
filho, Eduardo Bolsonaro, atualmente Deputado Federal, para o cargo de Embaixador
do Brasil nos EUA, se tornando o chefe da embaixada brasileira provavelmente
mais importante do mundo (o “filé mignon” da representação diplomática
brasileira). Dentre outras justificativas, ele declarou publicamente que está
nas razões dessa indicação o parentesco filial, externando que pretende
“beneficiar o filho sim” e que “se puder dar um filé mignon para o meu filho,
eu dou”.[13]
Apesar de haver posicionamento do STF
acerca de não configurar o nepotismo descrito na Súmula Vinculante 13[14] a
nomeação de parentes quando estes já exercem cargo eletivo, a nomeação para
qualquer cargo público, mesmo para os que o concurso não é exigível e a
indicação é atribuição discricionária do chefe do poder executivo, deve guardar
consonância com o interesse público. Embora não seja ilícito nomear um parente
nessas condições, é imprescindível que este tenha as necessárias qualificações
éticas, políticas e técnicas para o exercício daquele cargo. Não se afigura
constitucional uma nomeação para cargo público apenas e tão somente pelo fato
de o nomeado ter parentesco com o nomeante, não observando o princípio
republicano e a impessoalidade que deve orientar todos os atos de um chefe da
administração pública.
Aí é possível vislumbrar ato de
nepotismo, o que configuraria delito previsto no art. 9º, 4, 5 e 7, o mesmo
dispositivo referente a crimes contra a probidade na administração, transcrito
no item anterior.
Impeachment já?
Obviamente que tudo o que tratei no
presente texto, ressalto, são crimes comuns e de responsabilidade cometidos
pelo Presidente da República em tese, não uma conclusão definitiva. Todavia,
há, como visto, vários atos presidenciais que podem fundamentar juridicamente
um pedido de impeachment do Presidente Jair Bolsonaro.
No aspecto processual, por seu turno, é
evidentemente necessária a estrita observância do devido processo legal no qual
podem restar esclarecidas as circunstâncias de cada um dos atos e sua
desconfiguração como crimes ou ainda a ocorrência de escusas legalmente
aceitáveis para que o Presidente Bolsonaro eventualmente não venha a sofrer as
penas de um processo de impeachment. Podem também, em suas análises da
conjuntura política do país, a Câmara dos Deputados e/ou o Senado Federal
entenderem que, não obstante o Presidente tenha cometido um ou mais desses
crimes, deva permanecer no cargo por que sua destituição seria politicamente
mais inoportuna que sua permanência. As Casas do Congresso possuem legitimidade
constitucional para fazer esse tipo de análise e deliberar nesse sentido,
embora não possam fazer o inverso (condenar um presidente da República que não
tenha cometido um crime passível de punição com o impedimento, p. ex.).
De todo modo, a conjunção da análise
técnico-jurídica dos atos aqui destacados aliada a uma eventual vontade
política do Congresso Nacional em levar adiante um processo de impeachment
pode viabilizar um impedimento constitucional do atual Presidente da República,
embora pessoalmente eu não vislumbre esse cenário político no futuro próximo.
Bruno Galindo é professor associado da Faculdade de Direito do Recife/Universidade
Federal de Pernambuco e doutor em Direito pela UFPE/Universidade de
Coimbra-Portugal.
Notas:
[1] https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/07/31/bolsonaro-alucinacao-impeachment-dilma-temer-miguel-reale-junior-entrevista.htm, acesso:
31/07/2019.
[2] GALINDO, Bruno. Impeachment à Luz do
Constitucionalismo Contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2016.
[3] GALINDO, Bruno. Impeachment en Brasil
Pos-Dilma: ¿Ulises Desatado por Hermes? El “Canto de las Sirenas” Hermenéutico-Constitucional.
In: Revista Videre, v. 10, nº 19. Dourados: UFGD, pp. 385-418, 2018.
[4] TRIBE, Laurence. American Constitutional Law.
3ª ed. New York: New York Foundation Press, 2000, pp. 176-178. ACKERMAN, Bruce.
We The People 2 – Transformations. Cambrige/Massachusets: Belknap Press of
Harvard University Press, 2001, pp. 178ss. GALINDO, Bruno. Impeachment à
Luz do Constitucionalismo Contemporâneo. Curitiba: Juruá, 2016, p. 30.
[5] https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/07/19/interna_politica,772322/video-bolsonaro-chama-governadores-do-nordeste-de-paraiba.shtml, acesso:
01/08/2019.
[6] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/07/termo-paraiba-usado-por-bolsonaro-reflete-preconceito-ao-nordeste-e-cabe-punicao.shtml, acesso:
01/08/2019.
[7] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/07/brasil-atua-para-evitar-nova-venezuela-diz-bolsonaro-ao-lado-de-diplomata-dos-eua.shtml, acesso:
01/08/2019. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-46980502, acesso:
01/08/2019. https://veja.abril.com.br/politica/nos-eua-bolsonaro-faz-visita-surpresa-a-cia/, acesso:
01/08/2019. https://jornalggn.com.br/america-latina/chanceler-de-bolsonaro-articula-derrubada-do-governo-da-venezuela/, acesso:
01/08/2019. https://www.youtube.com/watch?v=caYE7LVrWFc, acesso:
01/08/2019. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-48801565, acesso:
01/08/2019.
[8] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/ordem-para-celebrar-golpe-e-inedita-nos-ultimos-20-anos-e-incomoda-tambem-militares.shtml, acesso:
01/08/2019. https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-estimula-celebracao-do-golpe-militar-de-1964-generais-pedem-prudencia,70002766930, acesso:
01/08/2019.
[9] https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/07/brasil-atua-para-evitar-nova-venezuela-diz-bolsonaro-ao-lado-de-diplomata-dos-eua.shtml, acesso:
01/08/2019. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-46980502, acesso:
01/08/2019. https://veja.abril.com.br/politica/nos-eua-bolsonaro-faz-visita-surpresa-a-cia/, acesso:
01/08/2019. https://jornalggn.com.br/america-latina/chanceler-de-bolsonaro-articula-derrubada-do-governo-da-venezuela/, acesso:
01/08/2019. https://www.youtube.com/watch?v=caYE7LVrWFc, acesso:
01/08/2019. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-48801565, acesso:
01/08/2019.
[10] https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/ordem-para-celebrar-golpe-e-inedita-nos-ultimos-20-anos-e-incomoda-tambem-militares.shtml, acesso:
01/08/2019. https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-estimula-celebracao-do-golpe-militar-de-1964-generais-pedem-prudencia,70002766930, acesso:
01/08/2019.
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/07/19/interna_politica,772322/video-bolsonaro-chama-governadores-do-nordeste-de-paraiba.shtml, acesso:
01/08/2019.
https://oglobo.globo.com/brasil/talvez-pegue-uma-cana-aqui-no-brasil-afirma-bolsonaro-sobre-glenn-greenwald-23837301, acesso:
02/08/2019. https://exame.abril.com.br/brasil/bolsonaro-diz-que-no-seu-entender-glenn-greenwald-cometeu-crime/, acesso:
02/08/2019.
[11] Recordando que a Lei é de 1950 e faz
referência aos direitos previstos na Constituição de 1946, então vigente. Hoje
esses direitos constam do art. 5º da Constituição de 1988.
[12] https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/03/29/ibama-exonera-servidor-que-multou-bolsonaro-por-pesca-irregular.ghtml, acesso:
02/08/2019. https://apublica.org/2019/03/foi-vinganca-pessoal-diz-ex-fiscal-do-ibama-demitido-por-governo-bolsonaro/, acesso:
02/08/2019. https://www.dw.com/pt-br/ibama-exonera-funcion%C3%A1rio-que-multou-bolsonaro-por-pesca-irregular/a-48107830, acesso:
02/08/2019.
[13] MATHEUS, André Luiz de Carvalho. Porque,
juridicamente, Eduardo Bolsonaro como embaixador nos EUA é nepotismo.
Disponível em http://www.justificando.com/2019/07/19/porque-juridicamente-eduardo-bolsonaro-como-embaixador-nos-eua-nepostismo/, acesso:
02/08/2019. https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/07/18/pretendo-beneficiar-um-filho-meu-sim-diz-bolsonaro-sobre-eduardo.htm, acesso:
02/08/2019. https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,pretendo-beneficiar-sim-o-meu-filho-afirma-bolsonaro,70002927825, acesso:
02/08/2019.
[14] STF – Súmula Vinculante 13: “A nomeação de
cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até
o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma
pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o
exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada
na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União,
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste
mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.”
Tags
Sexta-feira, 2 de agosto de 2019
CONTATO
Justificando Conteúdo Cultural LTDA-EPP
redacao@justificando.com
http://www.justificando.com/2019/08/02/impeachment-do-presidente-bolsonaro-ha-fundamentos-juridicos/
Nenhum comentário:
Postar um comentário