GUETO
DO PENSAMENTO INQUIETO
FUTURO
Cristovam
Buarque – Economista, Professor da Universidade de Brasília,
Coordenador do Doutorado Internacional em Economia Ecológica
O
Pensamento Inquieto (Curso de Extensão Universitária a
Distância). Organização de Clodomir de Souza Ferreira, João Antonio de Lima
Esteves e Laura Maria Coutinho – Brasília: CEAD/Editora Universidade de
Brasília, 1993. (pp. 79 a 92).
QUESTÕES
PARA REFLEXÃO
O futuro não é apenas um
conceito do tempo físico. O futuro é um sentimento do homem, que se tornou
capaz de imaginá-lo a longo prazo e de agir para torná-lo real.
Inúmeras utopias previam um
futuro idílico e maravilhoso para o mundo. A realidade atual oferece muito mais
possibilidades de um porvir assustador,
marcado pela violência, pela desigualdade e pela destruição. O homem aprendeu a
ter medo do futuro.
Neste texto, Cristóvam
Buarque diz que “chegamos ao fim de um século que teve a grande aventura de
fazer nascer e de matar o futuro”. Poderá o futuro renascer? Como poderemos
recuperar o prazer de inventar o futuro? “Não há futuro para o homem sem um profundo
gosto pela aventura de construí-lo”. O que pensamos nós, no Brasil, o
eterno “país do futuro”?
A notícia publicada nos jornais de que um cometa chamado
Swifato está vindo em direção à Terra e que deverá chocar-se contra o planeta,
em agosto do ano de 2126, gerou um susto em grande parte da humanidade. Gerou,
inclusive, um esforço de tentar com que este cometa seja desviado da Terra e vá
para outro lugar, ou exploda. Se esse cometa se chocar com a terra, as
indicações dizem que será mais grave do que aquele que há 60 milhões de anos
eliminou a vida dos dinossauros. E que dessa vez eliminaria a humanidade
inteira. Se isso acontecer, o Futuro morre nesse dia de agosto desse ano do
século seguinte ao próximo.
Será que o fim da humanidade é a morte do
futuro? Eu acho que sim. Porque, no dia seguinte ao choque com esse
cometa, nada vai mudar no Universo. O Universo não vai nem ao menos tomar
conhecimento de que uma insignificante espécie chamada Homem desapareceu. O
Cosmo não saberá que tudo o que foi criado pela mente humana terá desaparecido,
ou terá, em certa parte, ficando perdido num planeta sem vida ou com pouca
vida, certamente, mas sem vida inteligente. O Sol vai continuar a nascer, a Lua
vai continuar a rodar em torno da Terra, e todas as galáxias continuarão se expandindo. Mas, a
meu ver, o futuro terá morrido, porque o
futuro não é um conceito de tempo físico. O futuro é um sentimento dos homens.
O Sol, nascendo, terá um presente na hora em que nascer, no minuto seguinte e
no outro minuto, mas não havverá um futuro prevendo que o Sol voltará a nascer
no outro dia. Não haverá um futuro prevendo que um outro planeta voltará a se
chocar alguns milhões de anos depois. Pois bem, o que quero deixar claro com
isso, nas provocações que devem ser feitas dentro da ideia de um pensamento
inquieto, é que o futuro não é uma
variável física, o futuro é um sentimento humano. E, mais que isso, como
segunda parte dessa inquietação que a Universidade de Brasília tende a
desenvolver, quero dizer que o futuro não apenas é um sentimento que desaparecerá no
momento em que os que têm esse sentimento morrem, como se esse sentimento fosse
extremamente recente na espécie humana. Há poucas décadas o futuro
já existia, mas na cabeça de poucos. Há alguns séculos ela já começava a
nascer, mas na cabeça de ainda menos. E se olharmos mais atrás, há milhares de
anos já existiam os Homens, já existia a cultura, mas o futuro não existia. O
futuro nasceu em algum momento da História dos homens. Observando os
temas do Pensamento Inquieto, veremos que, tirando Marx, que é um nome próprio,
é uma pessoa, todos os demais temas já poderiam estar sendo debatidos em uma
semana de Pensamento Inquieto na Sorbonne, do século XIII; em Cambridge, do
século XIV, nas primeiras universidades latino-americanas do século XVI.
Justiça, democracia, rebeldia, todos poderiam, mas duvido que o futuro pudesse ser debatido naquela época. O futuro não
poderiam ser debatido porque ele não existia. Podem argumentar: mas alguns
físicos pensavam o tempo, e até entendiam e já previam o futuro físico. Mas eles não tinham
o sentimento do desejo do futuro.
Quatro razões impediram o futuro de nascer na Idade
Medieval e mesmo no século XVIII, já com o Iluminismo. O primeiro é porque futuro não é um sentimento, mas um desejo; não
apenas é uma previsão, mas é uma previsão do bom e do belo. O futuro
significa o bom, significa o belo, significa aquilo onde queremos chegar, tanto
para nós quanto para uma geração anterior. Pois bem, até o século XVIII havia
medo do futuro.
Segundo, esse futuro era apenas os anos seguintes. Não havia o sentimento de futuro do longo
prazo. Todas as utopias escritas, até uma do século XVIII, e só uma, localizavam-se
em espaços. Nenhuma se localizava no futuro. O próprio nome utopia vem de uma
ideia de lugar, ainda que signifique lugar nenhum. A Atlântida tem um lugar, o
Eldorado estava em algum lugar. Todas as
utopias eram localizadas em algum lugar, mas ninguém imaginava que o futuro
fosse utópico, as pessoas imaginavam que o futuro fosse assustador. A
primeira razão, por que não havia futuro, era o medo dele. A segunda, era que
não havia prazer em pensar e viver o futuro. O prazer estava no passado. As
pessoas curtiam mais o presente ou o passado.
A sobrevivência, até recentemente – e isso é
fundamental para entender nosso tema -, dependia mais das lembranças, das
técnicas do passado do que dos sonhos com as possibilidades das técnicas do
futuro. Para um camponês sobreviver, ele não tinha de imaginar técnicas
futuras, ele tinha de não esquecer as técnicas que seus pais ensinaram.
Completamente diferentes, os jovens agricultores dos países ricos, cada vez
mais, a partir deste século, buscam esquecer o que aprenderam no passado e
buscam sonhar e executar novas formas de sobrevivência, consideradas cada vez
mais simples daqui para a frente. Vejam como temos diversas razões que
demonstram que não era fácil existir o futuro. Havia medo, não havia prazer, havia
uma prisão pela luta da sobrevivência com as técnicas que vinham do passado, e,
finalmente, não havia como prever. Era impossível no século passado, mesmo até
1950, 1960 ou 1970, a perfeição da previsão de que um cometa se chocaria com a
Terra. O cometa é um pequeno pedaço de pedra, mesmo com 10 Km como tem esse e
vai se chocar, nessa imensidão de espaço, com a Terra. Essa previsão, com esta
sofisticação, com esta exatidão, seria impossível sem os computadores de hoje.
Além disso, sem os grandes telescópios, não seria perceptível. Então, vejam que quatro fenômenos foram
superados, quatro características foram superadas para fazer com que o futuro
pudesse ser parido nesse processo de evolução cultural. A sobrevivência
passou a depender mais do futuro do que do passado, na medida em que a
Revolução Industrial começou a oferecer maneiras melhores, mais fáceis e
eficientes de produzir, simplificando a luta pela sobrevivência.
Surgiu um otimismo muito grande em relação ao futuro e o
prazer de especular sobre ele. A
ficção científica não existia há duzentos anos, ainda que alguns gregos
pudessem ter falado sobre haver ou não vida na Lua, se era possível ou
impossível ir lá, mas não existia como categoria das artes literárias, ainda
que hoje em dia não seja vista como aquelas categorias com mais refinamento
literário pelos conservadores.
A capacidade de prever veio de uma maneira tão radical
que se mostrou estúpida; os homens passaram a acreditar tanto em uma tendência,
que passaram a ter certeza de que o futuro seria uma maravilha. Surgiu
o futurismo e a futurologia: o futurismo com o manifesto de 1907, a futurologia
com os trabalhos de matemática nos EUA, a partir das décadas de 1940 e 1947, e
sobretudo 1960. Mas um conceito fez o futuro possível, um conceito que se
chocava com o passado: o conceito de que o tempo é um processo fluído, o tempo
é um rio que escoa, quando antes todos achavam que o tempo era uma coisa que
circulava. Um camponês do século passado não conseguia perceber o
tempo além das quatro estações. Ele se fechava a cada 365 dias. Mesmo que eles
imaginassem o futuro de seus filhos, era um futuro visto na luta pela
sobrevivência a cada instante da resistência para não morrer nas guerras, nas
fogueiras das inquisições. Não havia
conceito de fluidez, de permanência. O tempo era circular, coisa que acontece
até hoje nas culturas primitivas dos índios, dos camponeses dos países sem
interligação com o Ocidente. Para os nossos índios, isolados, o tempo era
circular, ainda mais se não há prazer em pensá-lo, se a sobrevivência depende
do passado, e se não há como prevê-lo. A
partir de um certo momento – e isto vem com a Revolução Industrial -, o tempo
passa a ser perceptível com a sua fluidez, com a sua permanência. Então, o
futuro nasceu aí. O futuro nasceu pelo otimismo, pela previsibilidade; o
futuro nasceu pelo sentido do tempo fluindo, e o futuro nasceu porque ele
passou a dar prazer ao homem, que passou a dar
muito menos valor ao passado. Até quando se coleciona obras de arte do
passado, se visa enriquecer no futuro. O futuro passou a ser o centro, porque o
futuro nasceu de uma maneira quase perfeita no final do século passado e no
começo deste.
CONTINUA NA PRÓXIMA
QUARTA...
Obs.: Os negritos
itálicos são os destaques do texto original; os [ ], os negritos
e os negritos
vermelhos são destaques nossos.
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