Divulgando...
Boa
tarde povo!
Dia
de Pensamento Inquieto! Continuamos com os textos anunciados na primeira
postagem. Os mesmos serão divididos em várias postagens pra facilitar a
leitura.
Obs.:
Lembrando que temos uma novidade! Se você estiver sem tempo para ler o texto, a
partir de agora disponibilizaremos um link para que você possa ouvir o texto
sintetizado em MP3 (Haverá alguns sotaques visto que são sintetizadores
estrangeiros)! O(s) Link(s) estará(ão) sempre entre o primeiro e o segundo
parágrafo do texto postado.
Degustem!
Se há esses três sustos, dois de observações e um da
lógica, da análise, podemos tirar algumas inferências de como será [seria] o
futuro. Mas agora, pela primeira vez, podemos imaginar futuros diferentes.
Um dos erros foi imaginar que só havia um
futuro e que ele era idílico. A meu ver temos diante de nós um futuro que continua o
percurso da técnica como sua razão de ser, e um outro futuro que vai ter a
ética como seu controle e motor. Mas, se o futuro técnico tem
futuro, então o futuro não morreu? Ele morreu por um detalhe. É que o futuro técnico, não por hipocrisia mas
por crença, acreditou na igualdade e nos direitos humanos universais. A
partir de agora é o momento da verdade. O futuro técnico, para continuar, vai ter de explicar, de
maneira radical, não apenas a desigualdade, mas a diferença entre os seres
humanos. E falo diferenças não no sentido que os antropólogos usam
hoje, ou seja, do direito de ser diferente dos outros. Para o direito uso a
palavra diversidade.
Os homens têm de
ser diversos entre eles. Não há dois iguais, mesmo dois carecas. Nós temos de ser diferentes nos valores,
nos objetivos, nos propósitos e no comportamento humanista.
Agora é a hora da verdade. Ou fazemos do planeta uma
imensa África do Sul, em que um bilhão vai ter os lucros da modernidade e do
futuro tal qual tem sido definido, enquanto quatro bilhões ficam esquecidos,
marginalizados, ou vamos inventar outro futuro! Aí pode-se dizer: mas logo a
África do Sul? Sim, digo África do Sul não sob o ponto de vista racial. Aquele
país está deixando de fazer a exclusão racial para fazer, como o Brasil, uma
exclusão social. A África do Sul vai se ‘brasilianizar’ e nós vamos nos vamos
nos ‘sul-africanizar’, não no sentido racial, mas de se explicitar: os pobres
não entram na praia, como muitos já dizem. Os pobres não entram nas cidades.
Isso, mais dia, menos dia, será feito. Os pobres não entram nos hospitais, nas
escolas, nos restaurantes, nas lojas de brinquedo. Isso já existe. Só que isso
não se escreve. Vai ter de escrever, para manter os privilégios. Os pobres
descobriram onde estão as coisas, e vão lá. Esse é o problema da Europa. Os
pobres vão para a Europa. Os pobres vão para Ipanema, assim como os negros
foram para os bairros na África do sul. Isso teve de ser interrompido. Não vejo outro caminho para continuar a
modernidade técnica do que um imenso apartheid, ao longo de todo o planeta. Não é o Primeiro Mundo contra o Terceiro, mas dos ricos
contra os pobres, estejam onde estiverem.
Claro que isso só
se manterá se se levar adiante, com rigidez, o projeto técnico, usando a
biotecnologia para fazer com que esses quatro bilhões de excluídos não apenas
sejam excluídos, mas sejam de fato diferentes. Isso já está sendo feito.
Uma pessoa que come direito, que faz ginástica, que é robotizada por causa de
operações, enxertos e transplantes, ponte de safena, vitamina, computador para
dinamizar sua capacidade criativa, é igual àqueles meninos da Somália ou aos
pobres das pequenas cidades brasileiras? Não. Pouco a pouco estamos construindo
não pobres e ricos, mas duas espécies de seres humanos. Aí sim, o
futuro terá sua chance de renascer, continuando o mesmo percurso de antes. Mas esse é um futuro
incompatível com todos os sonhos que vêm do Iluminismo. É preciso
lembrar que os maravilhosos mestres gregos que criaram tudo o que temos até
hoje de belo e ético, os nossos padrinhos gregos já praticavam isso. Eles eram democratas. Os escravos eram bárbaros
e não tinham de votar. Eles resolveram o problema, criando a diferença. O capitalismo e o
Iluminismo tentaram manter a desigualdade abolindo a diferença: eliminou-se a
escravidão, todos têm direitos iguais. Linda declaração das Nações
Unidas. As constituições de cada país são maravilhosas. Mas isso se esgotou.
Acho até que todos acreditavam que um dia todos seriam ricos e todos iriam
consumir imensamente. Mas isso é
impossível. A camada de ozônio reclama, as florestas reclamam, o planeta
reclama. Não
dá para aumentar o número de consumidores se não reduzirmos a quantidade de
consumo. Como não se quer fazê-lo, assumamos, é o que muitos vão
começar a dizer, e outros já praticam sem dizer, vamos retomar a diferença que
havia antes do Iluminismo. Vamos dizer
que há duas espécies de seres humanos.
Obviamente não é este o futuro que eu gostaria. Esse
futuro inventa um humanismo diferente. Para dizer a verdade, se esse cometa
chegar daqui a duzentos anos e encontrar um planeta em que os homens são
divididos através de uma construção, acho que era bom não tentarmos impedir que
ele se choque com a Terra, porque não mereceríamos continuar o projeto. Então,
vamos sonhar com o futuro novo. Acho que há possibilidade de um futuro novo,
em que a ética defina o propósito. Claro que se eu dissesse quais são
os valores dessa nova ética, eu estaria sem do autoritário e contrapondo-me ao
primeiro dos itens que devem compor um propósito utópico subordinado à ética,
que é a democracia com o direito ao uso da liberdade individual, todos eles,
inclusive empresarial. Desde que essa democracia e essa liberdade casem com outro
item de um projeto utópico em que não haja mais diferença entre os homens, em
que eliminemos os apartheids que existem, de raças, de classes, de sexos, de religiões,
etc.
Acabar com o apartheid não é voltar ao conceito
da igualdade plena da produção já supérflua, essa é a produção de bens básicos, e não tenho como fazer com que
todos recebam, pois tecnicamente é impossível, e eticamente não me sinto obrigado a distribuir o
supérfluo. Não posso é deixar
que o supérfluo seja produzido às custas da redução do básico. Não posso tolerar,
decentemente que esse básico não chegue a todos, o que já é possível, com o
conhecimento técnico que temos.
Então, eliminar o apartheid não é fazer com que todos
possam e devam consumir igualmente, mas fazer com que ninguém seja excluído do
básico. E se ninguém o for, pode haver desigualdade, mas não haverá diferença.
E quais são os básicos? Primeiro: alimentação, ninguém passar fome. Claro
que não é futuro ter uma Somália. Mas claro, que também não é futuro que o país
que lhe der a salvação seja o mesmo país que dá comida e tira tudo pela taxa de
juros devido à dívida externa. É uma hipocrisia, e é incrível que alguns
acreditam que ela carrega uma dose de verdade. Não quero, com isso, que deixem
de mandar comida para a Somália, mas que deixem de tirar comida dos
brasileiros, pois somos obrigados a exportar alimentos, um país com fome, para
pagar a dívida externa. Essa é a mesma hipocrisia quando se diz que não há apartheid,
quando sabemos que há. O primeiro aspecto básico, então, e
alimentação. Nada impede que este
planeta tenha todos alimentados.
O segundo é educação básica. Nada impede que possamos subir a média de escolaridade de um habitante
do planeta de cinco para dez anos. Talvez isso não possa ser feito de
imediato, mas devemos começar.
O terceiro item é acesso aos transportes urbanos, já que uma parte considerável da população,
neste futuro de hoje, mora nas cidades e tem de se deslocar para longas
distâncias, o que antigamente camponeses só faziam em dias de festa. Não é
moderno a pessoa não poder se utilizar do transporte e perder o trabalho por
isso. Além de alimentação, educação básica e acesso a transporte, a saúde. Não
pode ter futuro um país onde ainda há pessoas que morrem de cólera, de
lepra. Não é preciso fazer cirurgia plástica de rejuvenescimento em todo mundo,
transplantes, próteses, mas que pelo menos ninguém morra antes do tempo, de
doenças ridiculamente anacrônicas.
Finalmente, faz parte do fim do apartheid que cada família
tenha um lugar do qual não se lhe expulse. E que este lugar seja
limpo, saneado. Vejam como sou modesto nos meus sonhos. Não coloquei que todos
tenham uma casa, pois acho que a casa vai ser um esforço pessoal de cada
família, em acordos sociais e com a participação do governo. Nem colocaria a
casa como parte de um projeto, para o fim do apartheid já. Mas, que
ninguém expulse, pois se ninguém a expulsar, ela faz a casa.
Então, temos como primeiro
item da modernidade a democracia. O segundo
seria o fim do apartheid com
esses cinco objetivos. O terceiro seria
ter o mínimo de eficiência econômica para fazer também o supérfluo, pelos
vícios que o futuro tradicional já mostrou. O quarto seria que tudo isso deveria ser feito com equilíbrio ecológico.
Não há futuro se destruirmos a ecologia. E se houver futuro com a ecologia
destruída, graças a uma ciência superior, será um futuro, mesmo que viável,
mais pobre do que o futuro com o verde da floresta.
E quinto, não há
futuro sem integração internacional. Não a integração como meio, conforme
propõem os neoclássicos, mas como fim, como propósito.
Vejam que este futuro não tem nenhum obstáculo que impeça
sua construção. Não há nada que impeça que o planeta inteiro seja alfabetizado,
que todas as crianças tenham acesso ao ensino básico. Nada impede que todos
sejam alimentados. A produção de alimentos hoje é maior do que as necessidades
de alimento do mundo. Nada impede o saneamento e a integração, mantendo a
soberania de cada povo para manter a sua diversidade cultural. O que
impede é que o futuro tradicional, que morreu, ainda não dá lugar ao outro.
E esse futuro
que morreu pôs como algo obsoleto a ética, a capacidade do homem de saber onde
ele gostaria de chegar. Porque
os homens acreditaram que já sabiam onde queriam chegar: à sociedade da
modernidade técnica perfeita. Para que sonhar com o mundo, se já sabemos
que ele vai ser bom e sabemos como será, ou seja, cheio de botões para
apertarmos?
Esse mundo está morrendo, mas não para um bilhão que controla
tudo, e quer continuar. Ele está sendo um pouco inibido diante da
necessidade de explicitar o apartheid. Ele vai entrar num processo de pensamento inquieto, de uma psicanálise
geral desse planeta, de uma loucura global a discutir: continuamos a
modernidade técnica implantando o apartheid, acreditamos ainda que
algum dia todos terão tudo? Ou começamos a reorientar para uma outra
modernidade, um outro futuro que seria subordinado a valores éticos?
Desejo acreditar que encontraremos um caminho para esse apartheid
ético. E o futuro vai renascer, até porque vamos renascer no gosto pelo sonho
do futuro, e não apenas pela mecânica de construí-lo, como era até a década de
1980. Não havia mais sonhos. Voltará o
sonho, o prazer que perdemos, não apenas de copiar e fazer o futuro, mas de
inventá-lo também.
Não vai bastar ser engenheiro do futuro. Temos a chance
de ser também o seu arquiteto. Isso muda tudo, isso gera riqueza muito maior.
Disse que tentaria especular o berço onde esse futuro
poderia nascer. É óbvio que ele terá de
ser um futuro planetário. Não haverá futuro no sentido fechado, mas ele vai
nascer em algumas das sociedades existentes. Ele não vai surgir no ar, não
em uma reunião das Nações Unidas, mas no pensamento coletivo de alguma coletividade, e as
coletividades não são planetárias ainda. Na ECO 92 todos disseram
que o planeta se reuniu. Não é verdade. Reuniram-se 130 nações. Nenhum daqueles
chefes de Estado representava o planeta. No máximo, representavam os seus
compatriotas, os seus eleitores.
Se pegarmos as
diferentes nações do mundo veremos que há uma com mais chance de ser o berço
desse futuro, porque é uma que reflete melhor o retrato do conjunto do planeta.
Talvez seja um desvio de nascimento. Eu acho que pode ser o Brasil. Mas vou justificar
como não sendo um desvio de nascimento. Se
o futuro tem de mudar uma tendência, tem de ser no lugar onde duas coisas
aconteçam: a tendência tenha sido tentada; e ela não tenha dado certo.
Nos pequenos países africanos, a tendência não foi
tentada. Eles ainda têm direito a sonhar com o futuro técnico. Na Europa não
deu tão errado, do ponto de vista deles. É neste país, e em alguns outros, que
o futuro foi tentado e ao mesmo tempo deu errado como em nenhum outro. Nenhum país tentou
durante cem anos, com tanta sistemática, o crescimento econômico pelas vias da
técnica para aumentar o PIB per capita; nenhum tentou com tanto êxito, nem fracassou
tão rotundamente na sociedade que criou. Dificilmente, se eu fosse
parisiense, leria o livro de Bellamy percebendo os sustos que ele me provocou.
Um parisiense não tomaria esses sustos.
Os sustos acontecem no Brasil, mais do que em qualquer
outro país. Portanto, temos a chance de fazer isso. O que nos impede de fazê-lo é, primeiro, o vício que temos com a
modernidade técnica e depois o bloqueio ideológico de imaginar a possibilidade
da modernidade ética.
Derrubamos um presidente e lutamos para pôr os corruptos
na cadeia. Mas ainda não demos um passo na luta para pôr as crianças na escola.
Como se a ética fosse apenas a primeira parte, e não a segunda. Estamos com uma certa cegueira da ideologia
de duzentos anos. A ideologia daquele futuro que ainda está em nossas cabeças.
Não conseguimos avançar e ver um futuro diferente.
O meu otimismo é que se não vimos ainda um futuro
diferente, estamos tremendamente assustados com o futuro tradicional que, a meu
ver, morreu.
Para concluir, já que estamos falando em futuro, queria
dizer que dentro desses objetivos da utopia de uma ética guardei um ponto
deliberadamente.
É que não há futuro sem o profundo gosto pelo sentimento da aventura de
construí-lo. Uma das
tragédias deste século foi acreditarmos que o futuro aconteceria
espontaneamente. Bastava acordar, trabalhar e o PIB aumentaria. Perdemos o
gosto de tomar uma nave na Espanha e descobrir um mundo novo. Perdemos o gosto de inventar. A ida à
Lua não é um trabalho de conquistadores, mas de cientistas. Vejam a diferença. Perdemos
o gosto pela aventura. Porque ali não é a aventura de quem vai, é a aventura
de quem constrói. Perdemos a aventura da arquitetura e nos contentamos com a
aventura da engenharia, trabalhando com base em encomendas formuladas por
outros tempos e outros países. Essa dimensão da aventura está faltando em
muitos de nós. Perdemos o sentimento da
aventura de inventar um mundo novo.
Este pensamento inquieto não seria possível, como eu
disse, há duzentos anos. Mesmo hoje há menos chance de fazê-lo numa
universidade europeia ou americana [estadunidense], em Mali ou no Senegal do
que no Brasil, para não ser tão pernóstico, eu diria na América Latina. Aqui
temos mais chances.
Dentro deste continente, onde os dois sustos ocorrem,
nenhum outro lugar tem mais chance de despertar para esses sustos do que a
universidade. Pela sua multidisciplinaridade, pela obrigação de conviver com
filósofos, historiadores e técnicos que dominaram este século, sobretudo com os
‘teólogos’ deste século terrível que foram – ponho no passado – os economistas,
entre os quais me incluo.
Está na hora de
nos aventurarmos a inventar uma teologia nova. E quem não tiver o gosto
pela aventura vai ver este discurso como um trabalho de Stephen King, como um
conto de terror numa manhã de quinta-feira. Mas quem for capaz de dizer: talvez
haja chance de imaginar a aventura de construir um futuro alternativo,
terá a sorte de estar no planeta num final de século complicado, num país, Brasil,
num momento trágico e, portanto, rico (como toda tragédia se bem administrada)
de sua história, e numa universidade capaz de fazer um encontro sobre o
pensamento inquieto.
Obs.: Os negritos
itálicos são os destaques do texto original; os [ ], os negritos
e os negritos
vermelhos são destaques nossos.
SUGESTÕES
DE LEITURAS
O choque do futuro – Alvin
Toffler. Artenova, 1971.
A desordem do progresso -
Cristovam Buarque. Paz e Terra, 1990, RJ.
Cem páginas para o futuro –
Aurélio Peccei. Ed. UnB, 1981.
Um sentido do futuro – Jacob
Bronowski. Ed. UnB. 1981.
A grande jornada – Amilcar
Herrera. Paz e Terra, RJ.
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