Leonardo Boff: ''Os 80 anos de Fidel: confidências''
Confira o artigo do teólogo Leonardo Boff, a
respeito dos 80 anos de vida de Fidel Castro, chefe de Estado em Cuba. O texto
foi extraído da Revista Fórum.
Publicado 09/08/2006 20:22
Os 80 anos de Fidel: confidências
Por Leonardo Boff*
O que vou publicar aqui vai irritar ou escandalizar
os que não gostam de Cuba ou de Fidel Castro. Não me importo com isso. Se não
vês o brilho da estrela na noite escura, a culpa não é da estrela, mas de ti
mesmo. Em 1985 o então Card. Joseph Ratzinger me submeteu, por causa do livro
''Igreja: carisma e poder'', a um ''silêncio obsequioso''. Acolhi a sentença,
deixando de dar aulas, de escrever e de falar publicamente. Meses após fui
surpreendido com um convite do Comandante Fidel Castro, pedindo-me passar 15
dias com ele na Ilha, durante o tempo de suas férias. Aceitei imediatamente,
pois via a oportunidade de retomar diálogos críticos que, junto com Frei Betto,
havíamos entabulado anteriormente e por várias vezes.
Demandei a Cuba. Apresentei-me ao Comandante. Ele
imediatamente, à minha frente, telefonou para o Núncio Apostólico com o qual
mantinha relações cordiais e disse: ''Eminência, aqui está o Fray Boff; ele
será meu hóspede por 15 dias; como sou disciplinado, não permitirei que fale
com ninguém nem dê entrevistas, pois assim observará o que o Vaticano quer
dele: o silêncio obsequioso. Eu vou zelar por essa observância''. Pois assim
aconteceu.
Durante 15 dias, seja de carro, seja de avião, seja
de barco me mostrou toda a Ilha. Simultaneamente durante a viagem, corria a
conversa, na maior liberdade, sobre mil assuntos de política, de religião, de
ciência, de marxismo, de revolução e também críticas sobre o déficit de democracia.
As noites eram dedicadas a um longo jantar seguido
de conversas sérias que iam pela madrugada adentro, às vezes até às 6.00 da
manhã. Então se levantava, se estirava um pouco e dizia: ''Agora vou nadar uns
40 minutos e depois vou trabalhar''. Eu ia anotar os conteúdos e depois, sonso,
dormia.
Alguns pontos daquele convívio me parecem
relevantes. Primeiro, a pessoa de Fidel. Ela é maior que a Ilha. Seu marxismo é
antes ético que político: como fazer justiça aos pobres? Em seguida, seu bom
conhecimento da teologia da libertação. Lera uma montanha de livros, todos
anotados, com listas de termos e de dúvidas que tirava a limpo comigo. Cheguei
a dizer: ''se o Card. Ratzinger entendesse metade do que o Sr. entende de
teologia da libertação, bem diferente seria meu destino pessoal e o futuro
desta teologia''. Foi nesse contexto que confessou: ''Mais e mais estou
convencido de que nenhuma revolução latino-americana será verdadeira, popular e
triunfante se não incorporar o elemento religioso''. Talvez por causa desta
convicção que praticamente nos obrigou a mim e ao Frei Betto a darmos
sucessivos cursos de religião e de cristianismo a todo o segundo escalão do
Governo e, em alguns momentos, com todos os ministros presentes. Esses
verdadeiros cursos foram decisivos para o Governo chegar a um diálogo e a uma
certa ''reconciliação'' com a Igreja Católica e demais religiões em Cuba. Por
fim uma confissão sua: ''Fui interno dos jesuítas por vários anos; eles me
deram disciplina mas não me ensinaram a pensar. Na prisão, lendo Marx, aprendi
a pensar. Por causa da pressão norte-americana tive que me aproximar da União
Soviética. Mas se tivesse na época uma teologia da libertação, eu seguramente a
teria abraçado e aplicado em Cuba.'' E arrematou: ''Se um dia eu voltar à fé da
infância, será pelas mãos de Fray Betto e de Fray Boff que retornarei''.
Chegamos a momentos de tanta sintonia que só faltava rezarmos juntos o
Pai-Nosso.
Eu havia escrito 4 grossos cadernos sobre nossos
diálogos. Assaltaram meu carro no Rio e levaram tudo. O livro imaginado jamais
poderá ser escrito. Mas guardo a memória de uma experiência inigualável de um
chefe de Estado preocupado com a dignidade e o futuro dos pobres.
* Leonardo Boff é teólogo e autor de Virtudes
para um outro mundo possível (três tomos) pela Vozes de Petrópolis.
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